(Casa, 6:30 da manhã, toca a campainha)
A (voz ensonada): Sim. Que se passa?
Siaka (guarda): Dr.ª mataram Baciro Dabó!
(A meio da manhã no páteo da faculdade)
A: Armando que cara tão triste é essa?
Armando: Vim agora da casa de Faustino. Família stá lá e tchora. Como é que é possível? Essa impunidade sempre.
(Casa, depois de almoço)
Braima: Faustino era homem simples, amigo de Braima.
(…)
A: Quando é que isso vai acabar?
B: É assim. Se alguém mata Braima, família de Braima vai matar, depois outro, sempre assim.
A: Mas vai ter que acabar um dia.
(B levanta as mãos em direcção ao tecto)
B: Só Deus ki sabe.
(No carro, a caminho do Bandim, cerca das 4h da tarde)
A: Vais amanhã na viagem? Acho que é na zona de Canchungo?
Revilino: Não sei.
A: Como não sabes?
R: Não estou a sentir bem.
A: Mas sentes o quê? Se estás a ficar doente tem que se ir ver o que é.
R: Não é isso. Não sinto bem psicologicamente.
A: Então? É por causa da mãe do teu filho?
R: Não. É isso que aconteceu hoje.
(Suspiro. E depois em voz de revolta)
R: A Dr.ª acha que a gente algum dia vai ter outro futuro?
A: Ó Revilino não faças perguntas difíceis. Tudo se há-de resolver.
R: Se isso continua assim vocês ainda vão embora.
A: Ó Rivelino, não vou nada embora. Ninguém se vai embora.
Sexta-feira passada foi mais um dia de vergonha e tristeza na Guiné-Bissau.
Baciro Dabó era candidato presidencial e ex-ministro da Administração Territorial.
Hélder Proença era deputado e ex-ministro da Defesa. Para além dos dois, foram ainda assassinados o motorista e o segurança pessoal deste último.
Até ao dia de ontem pensava-se que o mesmo destino teria sido o de Faustino Imbali, antigo Primeiro-Ministro, por agora parece que está sob custódia militar.
Em todos estes anos sempre que a Guiné-Bissau é notícia na televisão e nos jornais que os meus familiares e amigos vêm em Portugal é sempre uma má notícia. A Guiné-Bissau ou é um narcoestado, ou há um golpe de Estado ou assassinaram algum político. Em Março foi o próprio Presidente da República.
É impossível contrariar certas ideias com que as pessoas ficam quando nunca estiveram aqui e só ouvem essas notícias.
Não há razão conhecida para o que se terá passado na madrugada de 6ª feira. Sexta-feira à meia-noite já duas carrinhas com militares (ou pessoas vestindo uniformes militares, como é dito nas notícias) tinham passado para a casa de Faustino Imbali, a escassos metros daqui. Só por isso pedi ao Siaka que me avisasse se acontecesse alguma coisa durante a noite. Muitas suspeitas mas nem imagino o que terá sido toda aquela noite nesta cidade. Entrada nas casas das pessoas, tiros, detenções, gritos. Ao contrário das primeiras horas em que as notícias davam como certo o abortar de uma tentativa de golpe de Estado, a versão da vingança e outras semelhantes são cada vez mais ouvidas.
Não sei se importa saber àqueles para quem escrevo. Talvez a esses importe saber como foram as horas seguintes, o dia seguinte, no quotidiano da cidade.
De manhã fui a pé para a faculdade, os alunos apareceram para fazer os exames marcados. Tudo decorreu normalmente. A tensão dos exames cuja realização ocupou a manhã quase toda nem deu espaço para muitas conversas sobre o que se tinha passado. O tempo de antena nestes dias já se sabe, é para as dúvidas de última hora, a angústia de não se lembrar de alguma coisa.
Na cidade havia um pouco menos de trânsito do que o habitual mas nem tanta diferença assim. Havia gente a trabalhar, a vender, às compras, a acartar água, bidões. À tarde fui ao Bandim com o Revilino comprar coisas para a faculdade a preparar a cerimónia da próxima semana com toda a fé de que ela se irá realizar (umas compras a relatar mais tarde). Havia algumas lojas fechadas, outras de porta encostada, mas ainda havia muito movimento no mercado, como é normal.
À noite saímos para jantar como todas as sextas-feiras.
É estranho? Esta é a normalidade de um país que aos olhos de muitos não é “normal”. Alguém me disse que pela manhã eu parecia guineense porque parecia que via tudo o que se tinha passado como normal. Não é, nem eu acho. Mas é uma defesa das pessoas, de continuarem a viver como todos os outros dias, em parte porque estes episódios se repetem vezes demais. Durante o dia na rua as pessoas passavam, algumas tristes, outras assustadas, muitas delas conformadas.
Seria por causa do que aconteceu? Ou é sempre assim?
Há de facto em alguns sentimentos mais intensos, de revolta, de angústia, receios, incertezas. Mas para muitos deles é a continuação de todos os outros dias. Para o André, que só pede em último recurso, e ontem veio pedir porque não tinha que comer. Ou para o Saliu que se tem empenhado tanto em controlar tudo o que é preciso em volta dos exames para que daqui a uns dias possa pedir uma ajuda para comprar um saco de arroz, será que o maior drama é terem matado o Presidente?, um ex-Ministro?, um deputado?
Muitas das pessoas aqui vivem um drama diário. O drama de muitos deles aumenta quando pensam, como o Revilino o disse, que algum dia a comunidade internacional lhes possa virar as costas. É por isso que sei que ao pé deles estamos seguros, apesar de tudo o resto que vai acontecendo.
Nenhumas destas palavras consolam ninguém, mas espero que a descrição da “normalidade” do meu dia dentro da “anormalidade” que é o estado do país, possa fazer alguns compreender que para mim não há um perigo nas ruas e há razões para continuar a estar aqui.
Para quem está por dentro da história isto ainda não significa uma tomada de decisão em relação ao futuro. Estarei por mais uns meses, depois disso ainda não se sabe.
A (voz ensonada): Sim. Que se passa?
Siaka (guarda): Dr.ª mataram Baciro Dabó!
(A meio da manhã no páteo da faculdade)
A: Armando que cara tão triste é essa?
Armando: Vim agora da casa de Faustino. Família stá lá e tchora. Como é que é possível? Essa impunidade sempre.
(Casa, depois de almoço)
Braima: Faustino era homem simples, amigo de Braima.
(…)
A: Quando é que isso vai acabar?
B: É assim. Se alguém mata Braima, família de Braima vai matar, depois outro, sempre assim.
A: Mas vai ter que acabar um dia.
(B levanta as mãos em direcção ao tecto)
B: Só Deus ki sabe.
(No carro, a caminho do Bandim, cerca das 4h da tarde)
A: Vais amanhã na viagem? Acho que é na zona de Canchungo?
Revilino: Não sei.
A: Como não sabes?
R: Não estou a sentir bem.
A: Mas sentes o quê? Se estás a ficar doente tem que se ir ver o que é.
R: Não é isso. Não sinto bem psicologicamente.
A: Então? É por causa da mãe do teu filho?
R: Não. É isso que aconteceu hoje.
(Suspiro. E depois em voz de revolta)
R: A Dr.ª acha que a gente algum dia vai ter outro futuro?
A: Ó Revilino não faças perguntas difíceis. Tudo se há-de resolver.
R: Se isso continua assim vocês ainda vão embora.
A: Ó Rivelino, não vou nada embora. Ninguém se vai embora.
Sexta-feira passada foi mais um dia de vergonha e tristeza na Guiné-Bissau.
Baciro Dabó era candidato presidencial e ex-ministro da Administração Territorial.
Hélder Proença era deputado e ex-ministro da Defesa. Para além dos dois, foram ainda assassinados o motorista e o segurança pessoal deste último.
Até ao dia de ontem pensava-se que o mesmo destino teria sido o de Faustino Imbali, antigo Primeiro-Ministro, por agora parece que está sob custódia militar.
Em todos estes anos sempre que a Guiné-Bissau é notícia na televisão e nos jornais que os meus familiares e amigos vêm em Portugal é sempre uma má notícia. A Guiné-Bissau ou é um narcoestado, ou há um golpe de Estado ou assassinaram algum político. Em Março foi o próprio Presidente da República.
É impossível contrariar certas ideias com que as pessoas ficam quando nunca estiveram aqui e só ouvem essas notícias.
Não há razão conhecida para o que se terá passado na madrugada de 6ª feira. Sexta-feira à meia-noite já duas carrinhas com militares (ou pessoas vestindo uniformes militares, como é dito nas notícias) tinham passado para a casa de Faustino Imbali, a escassos metros daqui. Só por isso pedi ao Siaka que me avisasse se acontecesse alguma coisa durante a noite. Muitas suspeitas mas nem imagino o que terá sido toda aquela noite nesta cidade. Entrada nas casas das pessoas, tiros, detenções, gritos. Ao contrário das primeiras horas em que as notícias davam como certo o abortar de uma tentativa de golpe de Estado, a versão da vingança e outras semelhantes são cada vez mais ouvidas.
Não sei se importa saber àqueles para quem escrevo. Talvez a esses importe saber como foram as horas seguintes, o dia seguinte, no quotidiano da cidade.
De manhã fui a pé para a faculdade, os alunos apareceram para fazer os exames marcados. Tudo decorreu normalmente. A tensão dos exames cuja realização ocupou a manhã quase toda nem deu espaço para muitas conversas sobre o que se tinha passado. O tempo de antena nestes dias já se sabe, é para as dúvidas de última hora, a angústia de não se lembrar de alguma coisa.
Na cidade havia um pouco menos de trânsito do que o habitual mas nem tanta diferença assim. Havia gente a trabalhar, a vender, às compras, a acartar água, bidões. À tarde fui ao Bandim com o Revilino comprar coisas para a faculdade a preparar a cerimónia da próxima semana com toda a fé de que ela se irá realizar (umas compras a relatar mais tarde). Havia algumas lojas fechadas, outras de porta encostada, mas ainda havia muito movimento no mercado, como é normal.
À noite saímos para jantar como todas as sextas-feiras.
É estranho? Esta é a normalidade de um país que aos olhos de muitos não é “normal”. Alguém me disse que pela manhã eu parecia guineense porque parecia que via tudo o que se tinha passado como normal. Não é, nem eu acho. Mas é uma defesa das pessoas, de continuarem a viver como todos os outros dias, em parte porque estes episódios se repetem vezes demais. Durante o dia na rua as pessoas passavam, algumas tristes, outras assustadas, muitas delas conformadas.
Seria por causa do que aconteceu? Ou é sempre assim?
Há de facto em alguns sentimentos mais intensos, de revolta, de angústia, receios, incertezas. Mas para muitos deles é a continuação de todos os outros dias. Para o André, que só pede em último recurso, e ontem veio pedir porque não tinha que comer. Ou para o Saliu que se tem empenhado tanto em controlar tudo o que é preciso em volta dos exames para que daqui a uns dias possa pedir uma ajuda para comprar um saco de arroz, será que o maior drama é terem matado o Presidente?, um ex-Ministro?, um deputado?
Muitas das pessoas aqui vivem um drama diário. O drama de muitos deles aumenta quando pensam, como o Revilino o disse, que algum dia a comunidade internacional lhes possa virar as costas. É por isso que sei que ao pé deles estamos seguros, apesar de tudo o resto que vai acontecendo.
Nenhumas destas palavras consolam ninguém, mas espero que a descrição da “normalidade” do meu dia dentro da “anormalidade” que é o estado do país, possa fazer alguns compreender que para mim não há um perigo nas ruas e há razões para continuar a estar aqui.
Para quem está por dentro da história isto ainda não significa uma tomada de decisão em relação ao futuro. Estarei por mais uns meses, depois disso ainda não se sabe.
6 comentários:
Ana
Estava à espera de ler as tuas palavras em relação ao que aconteceu.
Na quinta-feira passada estive na embaixada da Guiné-Bissau em Portugal para ultimar detalhes em relação ao convite do embaixador para júri do concurso DEL8. Percebi que tinha acabado de chegar do aeroporto com o presidente da república interino. Não sei porque saiu da Guiné na véspera deste acontecimento, mas deixa que pensar...
Leio as tuas palavras e entendo na perfeição o que escreves. Não deixes de escrever!
Abraço
Quando pela televisão e pela internet li o que se passava em Bissau fiquei preocupada, na noite anterior tínhamos trocado emails e com toda a emoção contava ao meu marido os nossos projectos...
Um beijinho, força para todos!
Lena
Estes acontecimentos deixam-me o coração apertado... À distância tudo ganha outra dimensão.
E fico triste pelos guineenses, que mereciam melhor sorte.
Beijinhos e força!
Boa noite, Ana. Quem vive na Guiné tem outra dimensão dos problemas. Longe, eles engrandecem-se e tornam-se confusos e enigmáticos. A Guiné é assim! Agora mais. Tem tudo para ser imensa e, paradoxalmente, continua envolta em algo que a asfixia e não a deixa romper em todas as suas possibilidades. Isso, dá-me uma sensação desconfortável. País e povo, mereciam mais. Muito mais.
Bjs
Olá
Tristemente soube destes últimos acontecimentos...
Pensava ir aí de novo no início do próximo ano, mas... um outro ''atentado'' atacou de morte o meu parceiro de viagens francês que a Ana conheceu (Cancro na cervical). Não morreu aí onde circulamos despreocupadamente e foi ''morrer no leito''... coisas da vida...
O AFRIC-ANA é um lindo testemunho dessa vivência em Bissau.
Bem-Haja
A R
È triste a situação que foi escrita, sobre um atentado que vitimou vários seres humanos como nós, mas também é alentador. Em pouca palavras Ana mostrou que: Sair as ruas de Bissau não é tão perigoso como propagam os jornais da Europa e America do sul.
Se as pesoas estão a levar a vida rotineira de dantes significa que não existem esquadrões da morte e soldados em cada esquina.
É comoa contece no Rio de Janeiro. Alguns canais de televisão mostram as coisas que se a cidade inteira fosse um covil de bandidos e assassinos, que toda a policia é corrupta e que os moradores sequer podem sair de casa. realmente coisas assim acontecem, mas tenho primos que vivem naquela cidade e me contam que levam uma vida normal, como os de Bissau, saem de casa, vão as compras, se divertem e até hoje nunca presenciaram cenas como as mostradas na televisão.
Cada vez que leio estes relatos da Ana, mais vontade sinto de um dia conhecer a Guiné Bissau.
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