Não era associado a tanta tragédia que gostaria de voltar a falar nos Bijagós. Mas esta semana que agora acabou foi de profunda tristeza e luto para o país.
É assim a maior parte dos transportes entre o continente e as ilhas dos Bijagós, canoas rudimentares, com um motor simples, que tantas vezes avaria, sem qualquer segurança, sem coletes salva-vidas, sem rádio, sem GPS, nem sequer um simples foguete de sinalização.
Mais de 80 mortos entre o passado Domingo e Quarta-feira em quatro naufrágios, o mais grave no Domingo entre a ilha de Pecixe e o Biombo, outro no Rio Corubal, perto de Xitole e por fim duas canoas em Varela.
Até hoje foram quatro as minhas viagens até aos Bijagós. As duas primeiras, contadas aqui, foram excelentes experiências. As duas últimas tiveram um final feliz mas até ao baixar da cortina houve algum susto e dor, em especial a última, que fica para depois.
Esta terceira história sobre viagens aos Bijagós teve lugar em Setembro de 2005. Mais de duas horas à espera do transporte que nos levaria de Bissau a almoçar em Bolama, e regressar nessa mesma tarde a Bissau já seria suficiente para achar que o plano para um Sábado tão agradável dificilmente seria cumprido.
Acabámos por sair de Bissau ao final da manhã nesta canoa, de seu nome Bragança, (de ar, ora aventureiro, ora duvidoso), e o motor que, mesmo para quem não percebe nada do assunto, tinha um “trabalhar esquisito” revelou logo passados alguns minutos a sua fragilidade para a missão em causa. Alguma manutenção pelos marinheiros a bordo (manutenção e marinheiros são eufemismos), sem mais do que uma chave que parece servir para mudar o pneu de uma bicicleta e o motor voltou a ganhar força para mais uma hora de viagem, não fosse o único senão o facto de precisarmos dele por mais outra hora ainda. E assim, se ouviu, aquele “poc, poc, poc” de quem dá os últimos suspiros de vida.
Ficámos literalmente à deriva no meio do mar. Para evitar sei lá o quê, largou-se a âncora e ali ficámos. Sem motor, sem rádio, sem coletes salva-vidas, sem nada. Reacção quase automática: vamos telefonar para que alguém nos venha buscar. E rede?
Houve quem se entretivesse a fazer uma vela com uns plásticos que havia a bordo, e quem tivesse tentado remar com uma pá de construção. São estes resultados inúteis que se obtém de experiências movidas por meia dose de esperança e meia dose de desespero.
Um milagre aconteceu, e mesmo os mais ateus a bordo nesse dia, não sabem explicar de outra forma o que aconteceu em cerca de dois minutos, os únicos em que um ponto de rede chegou ao telemóvel da Cláudia. No tempo em que as lutas entre operadoras de telemóveis estavam ao rubro não era possível ligar de um telemóvel da Guinetel para outro da Areba (agora MTN) e vice-versa, e como a Areba tinha acabado de chegar ao país ainda poucas pessoas tinham o cartão dessa rede. Só um contacto da Areba era possível, o Dr. Fodé. Em menos de dois minutos foi possível ligar ao Dr. Fodé, explicar mais ou menos o que se estava passar e em seguida a chamada caiu. Não voltámos a ter rede, da Guinetel nunca, da Areba só aquele bocadinho.
Não fazíamos ideia do seguimento que poderia ter tido aquela comunicação, foi tudo tão à pressa.
Cansados de esperar, ao sol, à chuva que entretanto caiu, e novamente ao sol, e avistando margem de um lado e de outro – Bolama à direita e a margem do continente à esquerda (que é como quem diz mato de um lado e mato do outro) - alguma coisa tinha que ser feita.
Sempre mais aventureiro, o João atirou-se à água, e não fosse ter-se mantido agarrado à corda da âncora nunca mais teríamos visto o João. Resultado, puxámo-lo para cima, a rir-se à gargalhada e achar que não era nada perigoso.
Bom, perceber-se a força da corrente, levou alguém a achar que o melhor era levantar a âncora porque quase de certeza que seríamos arrastados até à margem de Bolama. Ainda que fora do centro ou longe do porto (não fazíamos ideia) sempre seria a ilha.
Como a âncora não subia (não consigo explicar mais de metade das situações daquele dia) resolveram cortar a corda. E assim ficámos à deriva no meio do mar numa canoa sem motor nem âncora.
O destino arrasou com todas as previsões “científicas” de quem achava que íamos ser arrastados até Bolama, e fomos parar à outra margem. Primeira tentativa de sair da canoa e enterrávamo-nos até aos joelhos numa lama.
Foi nesse bocadinho de terra lamacenta que o Jorge conseguiu "A foto da viagem" (que depois até serviu a alguma publicidade para redes móveis). Deslizando em movimentos semelhantes a quem faz sky o João de telemóvel na mão e de braço esticado no ar procurava rede no telemóvel, naquilo que parecia ser mesmo o fim do Mundo. Ainda hoje não sei onde estávamos. E nunca conseguimos rede.
De volta à espera na canoa, quase no lusco-fusco apareceu uma canoa. Alguns sinais, movimentos, gritos, avistaram-nos, estávamos salvos. Ou não. Tudo bem explicadinho e um pedido de que nos rebocassem até ao porto de Bolama: Não era possível.
Parece inacreditável mas estávamos a meio caminho de ser salvos por uma canoa que não nos podia valer porque transportava madeira ilegal. Bom, não nos podiam levar ao porto de Bolama mas podiam-nos levar até à margem de Bolama e já estaríamos mais perto.
Rebocados lado a lado lá fomos e ali cada vez mais perto do destino da viagem tivemos direito ao mais belo Pôr-do-Sol do farol de Bolama.
Ao anoitecer chegaram mesmo os meios dos nossos salvadores. Ficámos a saber que o Dr. Fodé foi imediatamente ter com o Dr. Silva Pereira, que de imediato tratou de tudo para que alguém nos encontrasse e nos fosse buscar. Ainda hoje devemos continuar a dever agradecimentos a ambos mas nunca saldaremos essa dívida.
Aí estava então, a lancha que nos rebocou até Bolama.
É impossível resumir mais esta história, de cada vez que a conto é assim, extensa.
Aqui ficam as fotos de Bolama do dia seguinte, um dia fabuloso.
A casa onde ficámos a dormir. Há 40 anos atrás deveria parecer um pequeno palácio. Agora tinha portas e janelas partidas, buracos nas paredes, tinta lascada. Dividi o quarto com a Mónica. Duas camas que pareciam do quartel da tropa de há décadas. Colchão velho, sem roupa de cama. Começámos a conversar mas adormeci e dormi profundamente.
Com excepção da foto deste edifício, reabilitado por um projecto de pesca (de uma ONG?), as fotos seguintes são dos restos de edifícios coloniais.
O Palácio do Governador. Onde entrámos para ver os anunciados frescos no tecto e paredes e saímos pouco depois a correr cheios de pulgas nas pernas, aos pulos e a sacudirmo-nos. Risota total. Lá dentro passeiam-se diversos animais, cães, porcos e galinhas. (Sim, uma imundice. A lamentar.)
Uma piscina abandonada, de água verde-acastanhada.
Vestígios de jardins, outrora arranjados.
E restos, muitos restos, de tudo.
Antes do almejado almoço em Bolama, um passeio de barco, não na canoa Bragança, que a esta hora estava praticamente toda afundada no porto de Bolama, mas na lancha que nos salvou, para uns banhos na Praia de Ofir, antes muito requisitada, hoje quase sem areia. Fez valer quase tudo.
Finalmente almoçámos em Bolama e regressámos a Bissau só com 1 dia de atraso em relação ao plano, e com uma grande aventura para contar. Hoje, eu, a Mónica, o João, a Cláudia e o Jorge, o Dr. Ataíde e o Tio Daniel conseguimos contar a história e falar desta aventura a rir. Na altura apanhámos um susto, embora não demasiado grande porque não nos sentimos em grande perigo. Daí que todos tenham repetido a dose nos Bijagós, alguns com mais e maiores sustos, e é por isso que haverá um Bijagós IV.
Bolama, a ficar ao longe. Últimas imagens até uma próxima visita aos Bijagós.
8 comentários:
Uma viagem que fez história, e que nunca sairá das nossas memórias!
Foi uma viagem fantástica! Depois dormi na varanda da casa a ver as estrelas! E foi também esta viagem que motivou uma das mais estranhas sensações que já tive, quando meses depois e em conversa com o Sr. Torres ele disse que aquela era uma zona onde passavam muitos tubarões… JPC
...que "suspense"...só faltou aparecer um crocodilo a rondar...
boa reportagem que me recordou a primeira terra fora de Bissau por onde passei, não de canoa, mas de lancha de desembarque (LDM)rumo a Fulacunda.
bj
Henrique
Obrigado
em 1973 e 1974 vivi nessa terra
mas vejo que quase tudo estara na mesma
Não tenho palavras para transmitir a minha emoção ao encontrar, por mero acaso, o seu blog. Obrigada. Eu vivi em Bolama em 1963. A casa onde dormiu era a do gerente da Casa Branca, em Bolama, onde eu e o meu marido (já falecido), íamos quase diariamente. O jardim era onde eu passeava com o meu filho de seis meses a caminho do quartel onde morava.
O pontão da sua emotiva aventura era um dos passeios preferidos que fazia, olhando a ilha de S.João (o pontão é banhado pelo Atlântico, não é? Estou confusa). Havia um bar, ao lado direito onde íamos ao cair da tarde tomar algo fresco.
Bolama era divinal. Jantava no hotel do Sr. Patrício que era uma espécie de sonho de filme. Lembro-me de termos mosquiteiros nas pernas, por causa dos mosquitos, claro e de se comer (quase sempre) arroz com peixe frito.
Tenho muitos textos sobre Bolama no meu blog. Obrigadissimo por me ter feito recordar visialmente o que nunca me saíu do coração
Fantástico relato e lindas fotos, que encontrei pesquisando para o trabalho de meu diretor.
Gostei de conhecer!
Meu blog é
thaislinhares.blogspot.com
pra trocar idéas.
Depois de mais de 20 anos sem volata a terra que viu nascer, estas fotos entrestecem e muito...
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