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domingo, 6 de dezembro de 2009

SERIFO, EX-MÚSICO, GUARDA DE DIA, A CERIMÓNIA GDUBA E O SACALÁ

Em Junho o Serifo veio ter comigo. Muito abatido. Queria autorização para tirar férias. Não me cabe a mim esse tipo de autorização mas por mais que lhes diga (na faculdade) insistem em achar que eu é que mando. Não fazem quase nada se não lhes disser e perguntam-me o que eu nem sei nem tenho que saber.
Não sabe quantos dias de férias precisa. A razão do Serifo para precisar desses dias é que tem de ir fazer a “cerimónia de lavagem”.

O Serifo é de Buba no Sul da Guiné. Tem 50 anos. Toda a sua família se encontra em Buba e ele vai até lá sempre que pode. Essa família inclui 2 mulheres, 9 filhos e um pai de 99 anos, que contradiz todas as estatísticas da esperança média de vida deste país. É o homem mais velho de Buba e já foi entrevistado na rádio.

No entanto a mãe do Serifo já morreu e depois de a mãe falecer ele devia fazer a cerimónia de lavagem do corpo Gduba. É essa a razão pela qual ele não se anda a sentir bem. A mãe era de etnia biafada e o pai da etnia mandiga. Se perguntarmos ao Serifo qual a sua etnia diz, em primeiro lugar, que é biafada mas segue as tradições de ambas as etnias.

Segundo a etnia biafada há sempre um contrato entre cada pessoa e o dono do mato, o Sacalá,e quando morre algum familiar como o pai ou a mãe é necessário o sacrifício de alguns animais para dar o seu sangue ao Sacalá, sob pena de as pessoas que não fizerem essa cerimónia virem a ter problemas de saúde ou quaisquer outros azares. Todas as pessoas têm que promover essa cerimónia quando se encontram numa dessas situações e nem a falta de condições económicas, para comprar, por exemplo, os animais, pode ser obstáculo.

O Serifo partiu e durante vários dias não havia notícias dele. A minha mente, incapaz por vezes de compreender culturas tão diferentes, levavam-me a pensar que talvez o Serifo estivesse doente e que seria melhor ter tentado convencê-lo a ir ao médico, ou até que o próprio Serifo já ultrapassava em alguns anos a esperança média de vida dada aos homens deste país (o seu pai é uma excepção raríssima); e se ele estivesse mesmo doente? De vez em quando, de manhã ao chegar à faculdade, perguntava ao Saliu: “O Serifo já voltou do Sul?”, “Alguém teve notícias do Serifo?”. Nada.

E um dia o Serifo voltou: muito bem-disposto, com melhor aspecto, parecia um homem novo. Vinha feliz, satisfeito, aliviado. Tinha cumprido o seu dever.

O Serifo é guarda de dia na FDB há quase cinco anos, veio substituir o Vicente quando este faleceu. Como ele fazia, liga e desliga o gerador, abre e fecha as portas das salas, leva e traz os livros de sumários, ajudando o seu grande amigo Saliu, e por vezes aparecem outras coisas para fazer. Antes trabalhou num projecto da cooperação holandesa de abastecimento de água. “Acabou o projecto”, lamenta, pois diz: “ganhava bem”. Mas a grande surpresa foi descobrir recentemente que o Serifo foi vocalista na primeira “orquestra” da Guiné-Bissau, os Cobiana Djazz, grupo fundado por José Carlos Schwarz, que depois fundou também os Super Mamma Djombo, dizendo-se portanto que este segundo grupo, hoje mais famoso, teve origem no primeiro.

Quando lhe disse que ia escrever sobre ele perguntei-lhe se teria alguma coisa para dizer a alguém, talvez aos meus colegas que estiveram neste projecto (FDB). Ri-se, mas depois começa a desbobinar. Muito teria para dizer mas resume-se a: “ainda tenho as sapatilhas que o Dr. João me deixou mas se ele pudesse mandar outras.” Agora rio-me eu. E termina dizendo mantenhas (em crioulo) ou abarca (em mandiga) ou numbara (em biafada) para os doutores João, Ataíde, Mónica e Cláudia.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

PRIMEIRO DIA DE ESCOLA

Agora a escola da Maira já começou há mais de um mês. No dia 12 de Outubro, com uma semana de atraso, pois queriam organizar uma cerimónia para apresentar e agradecer os livros enviados pelo actual Presidente de Portugal para a escola com o seu nome, a qual mesmo assim não pôde ter lugar antes do início das aulas.

Neste momento tudo parece ter entrado numa normalidade que me permitiu algum sossego sobre as preocupações iniciais. A Maira está adaptada à escola e mais do que isso gosta e parece apreciar cada momento.

A preparação para o começo das aulas foi sentida com grande entusiasmo de ambos os lados.

A mochila com os materiais já estava pronta há semanas, e só ficava aqui por casa até mesmo à véspera para que não se dissipasse tudo antes de passar pelo primeiro dia de aulas. Essa era uma preocupação legítima: ao fim de um mês a Maira vai pelo menos no quarto lápis a carvão, no terceiro afia, as canetas de pintar já não são localizáveis e os lápis de colorir duram porque nunca daqui saíram, e assim ainda é possível pintar pelo menos aqui por casa.

Mas havia mais preparativos. Por aqui preparou-se uma caixa só para as coisas da Maira. A Maira divide a cama com mais duas meninas, uma irmã e uma prima, e o resto da pequenina casa com várias pessoas. E tudo é um pouco de todos. Mas agora que a Maira ia para uma escola onde todos os dias se deveria apresentar muito arranjadinha, uma “gaveta” só sua era essencial. Houve espaço para um vestido azul que estreou no primeiro dia de escola e calças de ganga que passariam a fazer parte do uniforme escolar quando estivessem prontas as t-shirts da escola, entre outras coisas.

No domingo, véspera do primeiro dia de aulas, quando cheguei ao pé da casa da Maira por ali também decorriam preparativos importantes. A Alzira, irmã mais velha, arranjava-lhe o cabelo numa operação aqui conhecida por tissi cabelo.
Se algum dia achei que ia ser uma mãe exemplar, por a vontade de o ser ser tão grande, o primeiro dia de aulas desta menina, da qual me sinto um pouco responsável, meio madrinha, meio tutora, veio provar o contrário.

Fui levá-la à escola no primeiro dia mas lá chegadas constatei que as outras crianças tinham lancheira. Ops! O lanche para o intervalo. Compensa-se com umas moedas entregues para comprar bolinhos e sumos que vendem à porta da escola.

Como se não bastasse, no fim das aulas cheguei atrasada e ela já tinha ido para casa. Como há que ver sempre tudo pelo lado positivo, para além de ter sido um treino utilíssimo, e que perante experiência semelhante é pouco provável que falhe pelo menos nos mesmos aspectos; sem este último atraso não teria assistido à seguinte imagem: fui direita a casa da Maira, a menos de 200 metros da escola, e cá fora estava a Maira em cuecas (porque tinha tirado e guardado o vestido para não o sujar) sentada num banco e com o caderno noutro banco à sua frente, a fazer os TPC. Estavam afastadas quaisquer dúvidas sobre o seu interesse ou entusiasmo pela escola.

A Professora Etelvina passa-lhes trabalhos todos os dias, os primeiros dias eram uns exercícios (que não me lembro o nome) que serviam para treinarem o movimento da mão e do pulso, o pegar na caneta ou no lápis, faziam “ondas” e “e”s ou “u”s todos pegados, até que passaram a fazer letras, números, e agora sílabas.

A Maira vem quase todas as tardes aqui a casa, mostra os cadernos, quase sempre traz os TPC feitos, faz outros trabalhos que lhe vou dando, escreve letras ou números, pinta ou vê desenhos animados quando o meu trabalho aperta. Um destes dias um vendedor ambulante impingiu-me um destes quadros em que se escreve, se puxa um peça que passa por baixo do “ecrã” e apaga, tem uns carimbos e assim passámos mais uma sessão de estudo a brincar.

Entretanto as t-shirts da escola ficaram prontas e fica assim a Maira com a foto do Presidente do meu país ao peito. Não sei porquê mas rio-me.
Fica mais bonita com as trancinhas que um dia destes a Alzira lhe fez, embora tenha faltado a duas tardes de estudo porque leva muito tempo para ficar assim.
Entretanto, não só pelos comentários ao post anterior, mas muitas pessoas têm manifestado vontade de ajudar a Maira. A Telma enviou-nos um “Manual das 28 palavras” que ainda não começámos a utilizar para dar tempo de conhecer mais umas letras. E a mãe da Ana e a Ana (quem me escreveu) enviaram há poucos dias de Portugal uns miminhos para a Maira: um livro da Rua Sésamo, com o Egas e o Becas (série que fez 40 anos há poucos dias que é de facto um sucesso neste método de aprender a brincar), mais uns livros de histórias e alguns de exercícios, que já estão a ser muito úteis.
A todos um obrigada meu e da Maira.
O nosso obrigada especial vai para a Lena que tem trabalhado para que tudo isto seja possível. Há umas semanas disse-me que esperava apenas que a ajuda pudesse fazer sorrir várias pessoas. E, como o trabalho não me permitia tempo para escrever aqui enviei-lhe estes sorrisos.
A ajuda tem sobretudo feito sorrir a Maira mas estas crianças, familiares e vizinhas da Maira ficam igualmente felizes. Cada vez que lá vou chamam-me branca di Maira, riem-se muito, correm à minha volta, ficam genuinamente felizes; e este momento emocionante foi apanhado num desses dias em que vieram até junto do carro despedir-se de mim.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

ÁRVORE É PÉ-DI-MANGO

O início de um sonho
Quando eu e a Lena decidimos que a Maira dos olhos azuis seria a primeira menina a concretizar um sonho feito de panos africanos, apesar de toda a vontade, temíamos várias coisas. Uma delas era a adaptação da Maira à escola escolhida. Em parte porque fiquei com a impressão que muitos dos meninos que iriam para a 1ª classe naquela escola já lá tinham frequentado a pré. A Maira não falava nada em português, entendia pouco, ou quase nada, do que lhe dizia em português, parece-me, nunca tinha visto um livro nem de histórias infantis, nada com letras, números, bonecos.

Ainda antes de partir para férias, pedi ao Eliseu (um post sempre adiado), que ensinasse algumas coisas à Maira, a falar um pouco mais de português, a tentar conhecer algumas letras e números. Não lhes deixei mais que um bloco de notas, caneta e lápis de carvão. Era o que havia aqui naquele momento, no meio das pressas de mais uma partida.

O início das aulas na Escola Privada Portuguesa Professor Doutor Cavaco Silva estava previsto para dia 5 de Outubro.

Como todos os anos, o regresso em Setembro foi acompanhado de muita chuva de trabalho (e de chuva real também) mas, a três semanas da data prevista para o início da escola, as lições da Maira mudaram-se aqui para casa. Foi num domingo que fui buscar a Maira para vir a minha casa pela primeira vez.
Os primeiros momentos foram de deslumbramento. Mostrei-lhe a mochila, os livros, cadernos, lápis e canetas de cor. Tentei explicar-lhe tudo ao mesmo tempo. Mostrei-lhe a casa e penso que o que achou mais fascinante foi a casa-de-banho. Nos dias que se seguiram ia lá pelo menos três vezes, em uma ou duas horas no máximo que aqui passa de cada vez. A primeira vez expliquei-lhe, depois passei a ouvir sempre o puxar do autoclismo e o abrir de torneiras.
Explico: a casa da Maira não tem casa-de-banho. A Maira e outras meninas, como ela e mais velhas, vão buscar água em bacias todo os dias para se lavarem, na rua, à porta de casa.
Foi na “loja do chinês” que desencantei estes livros, que parece que têm resultado bem para o começo.
Primeira lição da Maira, a letra A.

Antes de mais eu não fazia ideia do que estava a fazer. Uns dias mais tarde, o Osvaldo já aqui por casa, disse: Não se usa esse método de letra por letra, é por sílabas.
A minha boa-vontade para ensinar uma criança é maior do que a minha formação para esse efeito, confesso.

Mas também suspeitei do método e dos materiais logo na 1ª lição.
A letra A, “A” grande, “a” pequeno, palavras começadas por A.
Primeira imagem. O que é?, pergunto e aponto, e obtenho como resposta: “Pé-di-mango”.
Olhar de surpresa meu não sei porquê. À porta de sua casa, em volta de onde se move, as árvores são “pés” que dão mangas, papaias ou cajus. Não está errado mas vamos lá às palavras começadas por “A”. Agora já é a árvore, o avião identificou à primeira (até achei mais estranho), a águia era um catcho (pássaro em crioulo) e a ambulância um carro. Nada de grave. As dificuldades iniciais da Maira em identificar os desenhos nos livros são fáceis de explicar e muito compreensivas. Alguns objectos ela nunca viu mesmo, muitos conhece-os com outros nomes, e torna-se mais difícil identificar bonecos que representem coisas reais, quando não se tem contacto com bonecos ou livros.
Claro que as crianças na Europa são muito espertas desde pequenas, sabem tudo, dizemos. Têm livros desde os seis meses, cheios de bonecos, cores e sons. Vêm desenhos animados desde os dois anos e aos quatro têm computadores portáteis que ensinam as letras e números em inglês. É bom que lá seja assim, é pena que aqui não haja um livro nem por cada 100 crianças.

Aqui por casa as lições continuam. O livro das vogais já foi todo visto e revisto, o dos números idem. O percurso foi mais ou menos o seguinte: identificar a letra ou o número, colar os autocolantes respectivos, pintar e escrever a letra ou o número. Agora é repetir, por vezes encontrar alguns materiais na net e imprimir. Encontrei por exemplo estes blogs:
Espaço Educar
Coisas da Ana Paula
Desenhos Download

Agradeço se souberem de mais.

Para além dessas actividades a Maira aqui já viu um pouco de televisão. Disse-me que o pai de uma vizinha tem e que às vezes vê novela. Os primeiros bonecos que viu aqui em casa não eram nada apropriados. O Noddy salva o Natal tem o Natal, a neve, os presentes. Demasiadas diferenças mas a música do Abram alas pró Noddy entra no ouvido.
Por outro lado, um destes domingos vimos A ilha das cores. Isso sim, e fez-me pensar na Rua Sésamo. Por isso não posso deixar de fazer o pedido. Se tiverem materiais destes programas ou semelhantes que possam ser divertidos ao mesmo tempo que educam por favor enviem-mos.
Porque este post já vai longo e há mais de uma hora que amanhece e que o galo canta, volto ao trabalho e conto mais logo o 1º dia de escola da Maira.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A MEIDA QUE AFINAL É MAIRA E MUITOS PANOS

Preparar Setembro é a razão pela qual as últimas semanas em Bissau, antes de vir de férias no fim de Julho, são demasiado trabalhosas. Este ano preparar Setembro não significava apenas a época de admissão e a época de exames de recurso na FDB. Comprometemo-nos a inscrever a Meida na escola e as inscrições eram em Julho, as matrículas serão em Outubro. Era preciso actuar rapidamente sob pena de mais tarde não haver vaga.

A inscrição implicava a entrega da cópia de certidão de nascimento, fotografias tipo passe e o pagamento. É aqui que começa mais uma aventura guineense.

Afinal, a Meida embora crescidinha não tinha ainda sido registada. O único documento que tinha era um cartão de vacinas. A primeira ida aos Serviços de Identificação e Registo Civil do Bairro da Ajuda foi uma tentativa frustrada para registar a menina. Tinha pedido ao Eliseu para me acompanhar e o funcionário do registo, depois de eu dizer que queria registar aquela criança, olhou para os três e perguntou com ar desconfiado: Quem são os pais? Não me ri e disse apenas que não estavam. Era imperativo que eles fossem e por isso pedi à avó que os avisasse que viessem o mais rápido que pudessem para Bissau.

Nesse dia fomos apenas tirar as fotos tipo passe da Meida. Fiquei com a impressão que era a primeira vez que lhe tiravam fotos sem ser as minhas digitais, o que me fez anotar para revelar algumas fotos digitais que tenho dela para levar em Setembro.
Segunda tentativa nos serviços do registo civil, no dia seguinte, a meio da manhã. Mais uma missão abortada pois era tarde demais. Pagámos o impresso que o funcionário iria preencher mas tínhamos que voltar no dia seguinte às 8:00h da manhã.

À terceira é de vez, e desta vez também foi, mas não sem algumas peripécias. No boletim de vacinas, o único documento comprovativo da existência da menina até então, o seu nome escreve-se Maira, a sua mãe apesar de dizer que se chama Sábado e todos a conhecerem como tal, no único documento oficial que possui, a cédula pessoal (não tem BI) chama-se Rutte, o sobrenome de um dos avós estava escrito de forma diferente no documento oficial do pai e no boletim de vacinas dela. Ultrapassados todos os obstáculos ficou registada com o nome de Maira Mebum Sanhá, nascida a 28 de Julho de 2002, filha de Mebum Sanha e de Rutte Sanhá.

Voltei a Portugal para um período de férias e cheguei com a sensação de uma primeira fase de missão cumprida, e cheia de panos para a Lena, que estava muito feliz ontem com as novidades e os resultados obtidos. 157€ em pouco mais de um mês que darão para a inscrição e matrícula da Maira e para os cursos de informática da Menô e da Ondinha. Não tenho dúvidas que rapidamente conseguirá o suficiente para as propinas deste ano.
Modéstia à parte os novos panos vindos da Guiné-Bissau são ainda mais bonitos e o trabalho da Lena, embora não tivesse dúvidas, agora pude comprovar ao vivo que é fantástico e muito perfeitinho. É assim o meu novo porta-moedas Guiné-Bissau.

Obrigada Lena!

Parte da família da Maira (pai, mãe, Maira e a irmã mais nova, Rosária)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

MENÔ E ONDINHA, AS FILHAS DA NENÉ

A Ondinha foi a primeira dos 4 filhos da Nené a querer conhecer-me, há mais de quatro anos. O seu verdadeiro nome é Benamexare, é o nome que tem no BI, mas odeia-o (mesmo), e só o revela a muito custo. O nomi di tchon é Ondinha e a maior parte das pessoas só a conhece assim. A outra filha da Nené também tem um nome no BI e um nome da terra. Chamam-lhe Menô mas no registo é Eraclina. A Ondinha é quem aparece aqui em casa mais vezes e nunca as tinha visto juntas. Até este dia em que lhes pedi. Afinal nunca tinha calhado porque apesar de muito diferentes são muito amigas.
A Menô tem 21 anos, é mais tímida, a Ondinha tem 17 anos e é extrovertida, faladora.
Estudam as duas na 9ª classe, fruto de atrasos por diversas e más razões, a guerra, anos escolares sem efeito, um deficiente sistema de ensino público. Estão finalmente numa escola privada, dizem que o ano está a correr bem e que vão passar de classe. Está quase a acabar o ano lectivo. Depois da 11ª classe querem seguir para o ensino superior; a Menô sonha ser médica ou enfermeira e a Ondinha quer ser jornalista e modelo.

Os cursos vão ter que esperar e sabem que aqui será difícil essa formação, mas a Ondinha já vai dando os passos para concretizar um dos seus sonhos. Em 2007 participou num desfile no Campo Sueco e ganhou o 1º Prémio ao representar o seu Bairro, Bandim I (junto ao mercado do Caracol), e em 2008 participou numa passagem de modelos na Lenox.

No dia-a-dia estas duas mulheres da casa, por mais de metade do dia em que a mãe está a trabalhar, contam que ajudam nas tarefas da casa. Levantam-se às 6 horas da manhã, vão apanhar água se for necessário, limpam a casa antes de sair. Vão para a escola a pé e têm a sorte de ser perto. Esta classe tem aulas de manhã mas no próximo ano a 10º classe será de tarde. Num dia cozinha uma e noutro dia a outra, e a que não cozinha arruma a loiça a seguir.
E os irmãos? Dizem que os rapazes também ajudam às vezes, o mais velho menos.
À tarde resta-lhes algum tempo para descansar, estudar, brincar.
Ao fim-de-semana gostam de ir à matiné da discoteca Sonhos.

Já começa a ser mais comum entre as jovens guineenses casarem e terem filhos mais tarde, mas ainda não é a maioria. Estas duas raparigas parecem-me mais meninas do que mulheres quando olho à volta e muitas das raparigas das suas idades têm já uma rotina diferente. Não é isso que querem para já. Têm outros objectivos. A sua formação já foi adiada tempo demais. Querem acabar os estudos, querem um curso de informática, querem ter esperança de que as suas vidas podem ser diferentes de tantas outras.

Quando lhes perguntei se pudessem escolher uma qualquer prenda que alguém lhes mandasse de Portugal não hesitaram: um computador portátil. Olham para o meu como se fosse a coisa mais fantástica que alguma vez viram. Explico-lhes o que é o messenger e que estou a falar em tempo real com uma amiga que está em Portugal. Primeiro a dúvida, depois o fascínio. É mesmo.

Quando lhes peço para serem mais contidas a pedir, a Menô pede roupa e livros, em especial um livro sobre etnias da Guiné-Bissau, e a Ondinha um MP3 e revistas de modelos. Concretizável. Fossem os seus sonhos também assim.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

DAVID E DANIEL, OS GÉMEOS DA NATÁLIA

Nasceram no dia 22 de Março de 2005. Estávamos nas férias escolares da Páscoa e eu fui a única da minha equipa de trabalho a ficar em Bissau (ou a não ir a Portugal). Por opção, leia-se (iria dali a uns dias passear para o Senegal).

Vieram chamar-me ao bairro porque a Natália (empregada do Dr.) tinha ido para a maternidade e os meninos tinham nascido. Foi a primeira vez que fui à maternidade do Hospital Simão Mendes e era esta a história que prometi contar quando aqui há umas semanas recomendei a reportagem
DAR VIDA SEM MORRER.

Logo à entrada pessoas deitadas e sentadas no chão do corredor. Pedidas informações, cheguei ao quarto onde estava a Natália. Na cama dela repousava um bebé muito muito pequenino, envolto em panos, não de algodão, nem de nada que parecesse macio. Pesava afinal pouco mais que 1 Kg. E o outro? Estava na incubadora, na pediatria, um edifício na parte mais traseira do Hospital (na altura). Iria vê-lo quando saísse dali.

A Natália estava fraca, muito cansada, resultado de ter perdido muito sangue no parto, e acabou por ficar com uma anemia. Mas noutra cama da mesma divisão uma mulher parecia ter um sofrimento maior, e não tinha um bebé ao seu lado. Tinha perdido a criança. Situação afinal tão comum.

Queria sair dali. Não havia alegria como outras as vezes que tinha ido a uma maternidade visitar uma mãe e o seu bebé. Não havia higiene, flores ou prendas.

Saí daquele edifício a achar que era o segundo local que cheirava mais mal de todos os locais onde tinha estado (o primeiro era o interior do Bandim).

Se a primeira impressão era até aqui péssima, nada me tinha preparado para o que vi a seguir. Na pediatria pedi para ver o bebé, filho da Sr.ª Natália, que estava na incubadora. Havia duas incubadoras encostadas a uma parede no grande hall à entrada, mas aqueles “buraquinhos” das incubadoras, que deviam ter uma espécie de mangas, não tinham nada, estavam só assim, um bebé em cada caixa de plástico com dois buracos, sem qualquer ligação a nada. Ninguém repararia durante horas se algum deles deixasse de respirar.

A enfermeira mostrou-me o bebé e perguntei o que tinha para estar ali (para além de pesar cerca de 900 gramas). Disse-me que era uma hemorragia mas que ia ficar bem. Para o provar levantou a tampa, retirou o bebé, segurou-o só com uma mão pela barriga, virou-o de costas e afastou uma fralda de pano mal colocada, e à medida que puxava a fralda o sangue seco ia-se despegando ou da pele ou da fralda. Do ponto de vista humano nunca vi nada tão nojento.

Durante umas horas não achei que fosse capaz de voltar ao Hospital, mas enchi-me de coragem e à tarde lá estava de novo. Depois de umas paragens na farmácia e no Sr. Amido (a melhor loja de crianças mesmo no coração do Bandim) seguiram-se uma discussão com um médico que se recusou a ir ver a Natália, quando esta não tinha força nem para levantar um braço, e outra com uma enfermeira pouco disponível para fazer um teste de paludismo e cujo único interesse era saber quem pagaria o teste.

Passadas as maiores atribulações, as minhas dúvidas começaram a concentrar-se em coisas mais importantes.

Como se chamariam os bebés? Ainda não tinham nomes. E também não tinham enxoval. Tudo aquilo que seria normal no meu país era que a pré-mamã comprasse o enxoval e pensasse e tentasse convencer o papá dos nomes a dar ao rebento.

Na Guiné não se pensa em nomes para o bebé que ainda não nasceu (raramente) e nunca se compra enxoval. A principal razão é a incerteza de que o bebé sobreviva ao parto ou aos primeiros dias. No que diz respeito ao enxoval também há uma questão económica.

Pergunta da Natália: se tivesses filhos como lhes chamarias? E assim dei os nomes aos bebés da Natália: David e Daniel.
Hoje, o David e o Daniel têm 4 anos, destronando qualquer dúvida sobre a sua sobrevivência pós-parto.

Antes da última viagem a Portugal a Natália veio pedir-me para trazer Dodot para o Daniel.
As Dodot são a designação para todas as fraldas descartáveis. Um hábito que existe aqui de chamarem uma série de produtos pelo nome da marca que marcou ou introduziu este ou aquele produto.

O Daniel é o bebé que esteve na incubadora e teve sempre problemas. Não anda, os pés não assentam no chão, e não fala, articula uma sílaba aqui e ali. Aqui ninguém consegue explicar o que tem, e por isso vai em breve, depois de muita luta da sua mãe, a uma consulta em Portugal.
No outro dia fiz-lhes uma visita depois de almoço. Moram longe, no Alto do Bandim, perto do Campo Sueco. O Daniel grita de contente e ri-se muito quando a mãe e o irmão chegam. Sendo gémeos, e olhando para os dois ao mesmo tempo, é flagrante que o nível de desenvolvimento do Daniel é bastante inferior ao do David. No entanto são ambos muito meigos, abraçam-se e beijam-se muitas vezes, o David fala ao irmão e pega nele. O Daniel percebe tudo o que lhe dizem e tenta responder.
Se lhe perguntamos: Kuma ki bu nomi? Responde “Dá”, a primeira sílaba do seu nome. Se lhe perguntam: Kim ki bandido? Repete a resposta: “Dá” e ri-se. Se lhe perguntam: Kantu ano ki bu ten? Estende a sua mãozinha e assinala quatro dedos.
Quando a mãe o irmão saem de casa grita de kasabi (tristeza) e tchora. E só mais tarde percebo porquê. Levei a Natália e o David ao bairro de Santa Luzia, a casa da irmã. Afinal o David não vive na mesma casa que a mãe, o pai e o irmão, e tudo porque são gémeos. Vive na casa da tia. Pergunto à Natália se também ela acredita naquilo que se diz de irmãos gémeos (é uma coisa terrível que pode acontecer numa família guineense) porque sempre me pareceu uma mulher mais moderna, menos dada a tradições difíceis de compreender nos dias de hoje, no resto do mundo, mas ela responde-me apenas: Sabes como são os africanos.

Digo um sim pouco convencido e penso que não compreendo mesmo. O David ficou com os olhos marejados de lágrimas à porta da casa da tia. Sei que a Natália é uma boa mãe, que faz tudo pelos filhos, mesmo que isso signifique mantê-los afastados para que a convivência com o resto da família e da comunidade lhes dê a todos uma certa paz.

Depois de tudo o que já passaram pensar no futuro não é fácil, mas só pode ser visto com optimismo e neste momento a esperança de que ir a Portugal possa ajudar o Daniel a desenvolver-se mais e a ter uma vida melhor é que reina nesta família.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

ANDRÉ, AS MÃOS DE UM CARREGADOR

Quando aterrei em Bissau a primeira vez, há quase quatro anos e meio, foi como se estivesse à espera que eu chegasse, como passou a estar depois durante muito tempo. O André estava à saída do aeroporto, à espera de apanhar as malas de alguém que depois carregaria até ao táxi ou a uma viatura no estacionamento.
Ele e outros meninos levaram as nossas bagagens até à carrinha e na altura os colegas de projecto que nos receberam trataram das gorjetas. No meio da confusão que era o aeroporto e a saída, na época às sextas-feiras à tarde, acho que não identificaria nenhum dos outros rapazes. Só o André.

Era deste modo, carregando malas de passageiros do então único voo semanal da TAP de Lisboa para Bissau, à frente do Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, que o André conseguia alguns trocos para ajudar a família. De todas as vezes que viajei ele me via e perguntava quando voltava, não se esquecia da data e quando eu voltava lá estava ele, e eram as minhas malas que ele levava (bom ou as dos colegas quando estávamos todos juntos e as bagagens à mistura). Foi assim até ao ano passado. Depois o horário do vôo mudou.

Hoje a TAP opera três vôos por semana de Lisboa para Bissau, mas isso não fez com que o “negócio” do André se tornasse mais lucrativo. Todos os vôos são agora de noite, aterram em Bissau cerca das 2 horas da madrugada, e tal como o André a maior parte dos carregadores desapareceu, receosos da noite escura de Bissau. Não é só a questão da segurança, mas sobretudo a falta de luz e de transportes toca-toca para regressarem às suas casas de forma económica.


Agora é costume encontrá-lo à frente de um dos Supermercados Bonjour ou Bodem, numa das mais movimentadas ruas do centro da cidade.
Cada vez que apareço disputa com o Amadu, quem carrega os meus sacos das compras. Caminha o mais próximo de mim que é possível e assim que compro alguma coisa e a vendedora me estica o saco, o André apanha-o primeiro. Quando tem várias coisas pede-me a chave do jipe, dou-lha e vai todo contente meter os sacos no jipe, volta. Não me entrega a chave até eu fazer todas as compras e ele ter levado todos os sacos.

Em Novembro o André foi operado às mãos por uma equipa de médicos holandeses que estiveram no Hospital Simão Mendes. Desde que o conheci, as mãos que estende com entusiasmo para nos cumprimentar estão deformadas. Inicialmente pensei que tivesse nascido com uma malformação mas aqui há uns tempos perguntei-lhe como tinha sido. Com cerca de 5 anos, numa apanha de caju, colocou as mãos numa bacia para retirar umas chaves que lhe tinham caído, e queimou-se num qualquer liquido ácido ou corrosivo. O que sempre me impressionou foi a facilidade com que carrega tudo, malas, caixas, sacos, quando alguns dos seus dedos nem estão completos.

Não tem a mesma facilidade na escola, diz que devido à sua dificuldade para escrever. Tem 20 anos e frequenta a 6ª classe mas é evidentemente inteligente. Para ele o mais importante é pagar a escola e ajudar a família, o pai já faleceu, e além dele e da mãe existem mais 6 irmãos.

Quando lhe tirei a foto ainda andava com ligaduras. Disse-lhe que ia escrever sobre ele e que ia colocar na internet. Disse que me queria oferecer coconetes. E no sábado seguinte veio ao Bairro trazer estes 4 côcos. Disse que era um para mim, e um para cada um dos meus colegas (a quem ele também faz questão de levar as compras).
Tem no seu quintal côcos e mandiocas e oferece-os aos amigos. Diz que não vende porque aos amigos as coisas não se vendem, oferecem-se. Muito raramente também pede que lhe ofereçamos algo que o ajude, por exemplo a pagar as propinas da escola (3€/mês). Mas a sua generosidade é largamente mais vasta do que a dos amigos e por isso é impossível recusar-lhe algum pedido que é feito de muito tempo a tempo.

quinta-feira, 5 de março de 2009

TOVOY

Ontem, a Lili (que já esteve aqui mas agora está ) perguntou pelos “nossos meninos”.
Esquecemo-nos por vezes que são adultos, que a nós nos parecem sempre crianças que ensinámos, com quem trabalhámos, que vimos crescer, mas que acima de tudo de quem queríamos estar mais perto mas de quem ficamos muito longe assim que passamos a fronteira.
É destes meninos e de uma quantidade de pessoas que nos tocaram no fundo do coração enquanto aqui estivemos que um dia sentimos mais saudades.
O Tovoy é um desses meninos.
Sim, é um pouco menino, tem 21 anos, e aparenta menos, mas aqui, mais do em outro lugar do Mundo é um homem. Nos últimos meses este menino foi forçado a ser o homem da casa. Em Setembro, há quase 6 meses, a dor da perda do pai foi acompanhada do assumir de todas as responsabilidades, a mãe e os quatro irmãos mais novos.
No mesmo mês concretizava o sonho de entrar na Faculdade de Direito de Bissau.

Foi aluno da Lili há uns anos, num curso de Língua Portuguesa no Centro Cultural Português. E foi colaborador das
Oficinas de Língua Portuguesa, criadas e geridas pelos Professores do PASEG nos liceus de Bissau. Diz que tudo começou quando ajudou o Ricardo e a Lili a organizarem um concurso de peddy paper no Liceu Dr. Rui Barcelos da Cunha. Imagino que tenha sido tão bom ajudante que nunca mais o deixaram fugir, tendo passado a ajudar na Oficina da Salvador Allende.

No ano passado quando precisámos de colaboradores para a Faculdade de Direito de Bissau os nossos amigos não hesitaram em recomendá-lo.

Poucos meses depois de nos ajudar em inúmeras tarefas, em especial na organização de tudo o que era evento, confessa-nos que quer concorrer para a Faculdade de Direito de Bissau.

Durante algumas semanas, o Pedro dá-lhe explicações de Filosofia, o Osvaldo e a Lili de Português, e em Setembro, mesmo no meio de todo o sofrimento por que passava, alcança um dos melhores resultados de entre quase duas centenas de candidatos. A Faculdade ganha mais um aluno de qualidades excepcionais, eu perco um colaborador em algumas funções que já não pode exercer e que dizem respeito à gestão de dados e avaliação de alunos, mas por uma excelente razão.

Ainda faltam uns meses para os exames mas alguma avaliação intermédia indiciam que não me engano, nem os seus amigos do PASEG se enganaram, quando apostámos que seria um excelente aluno. Ele que agora não nos deixe ficar mal. Nem pode se quer seguir o seu sonho. Já percebeu há muito o percurso dos melhores alunos da Faculdade, e, como eles, quer lutar pela melhor média que lhe permita ir fazer o mestrado a Portugal depois de concluir a licenciatura. E depois voltar para ajudar o país. Embora não ponha de parte um dia sair do país para ir para outro ajudar, como, diz: “vocês fizeram”. (E com isto exclui qualquer tentativa de não me comover).

Recentemente ganhou uma bolsa de estudo que é oferecida pela Cooperação Portuguesa a dez alunos da Faculdade, e assim poderá financiar o curso, o que é muito importante, pois neste momento as dificuldades que enfrenta poderiam mesmo levá-lo a pensar em desistir do curso. Embora formalmente já seja beneficiário, na prática o dinheiro demora algum tempo a chegar, e será apenas uma ajuda para tudo o que tem que enfrentar, pois é o único lá de casa que leva algum dinheiro para a sobrevivência da mãe, dos quatro irmãos mais novos, e agora também do sobrinho, filho da irmã mais nova.

Esta situação para a qual a palavra difícil não chega, levou a que, em Janeiro, tivesse feito o seguinte: vendeu um livro, o Código Civil, que foi oferecido a todos os alunos que entraram este ano para a Faculdade. Quando o recebeu na cerimónia de abertura do ano lectivo, em Outubro, beijou-o e disse que era o primeiro livro que tinha.

Quando soube o que tinha feito, chamei-o. Perguntei-lhe como foi capaz de vender o livro. Porque não tinha vendido o telemóvel? Depois de lhe dizer em que cadeiras do curso lhe iria fazer falta aquele livro (quase todas em todos os anos), cheguei ao centro da questão, disse-lhe que poderia vender a camisa porque não trabalhava numa camisaria, poderia vender os sapatos porque não trabalhava numa sapataria mas não podia vender um livro igual àqueles que existem na Faculdade, quando a maior parte deles até está à sua guarda, não poderia admitir que sobre eles recaíssem quaisquer suspeitas (pois foi com um grau de insinuação e suspeição que infelizmente a história me foi contada). Disse ter compreendido a lição.

Dois dias mais tarde, durante os quais me questionava sobre se teria sido melhor a lição ou se lhe devia antes ter oferecido o meu Código Civil, o Tovoy vai e zás, aparece na Faculdade com um cachecol da selecção acabadinho de comprar e que lhe custou mais de um terço ou metade do valor que tinha recebido da venda do livro. Nova reprimenda.

Não posso esconder que estes episódios foram uma desilusão, mas o Tovoy balança entre o menino que nós vemos, e às vezes pensa como menino, e o homem que é e que tem que ser para a família. E seja como menino seja como homem continua a precisar destes amigos, e este sorriso – neste dia por ter ganho o 1º Prémio de um sorteio de rifas – é o maior agradecimento que pudemos ter.

Pediu-me para o ajudar a fazer uma pesquisa na net na 6ª feira e diz que te quer mandar um mail, Lili. Tentaremos o mais que podermos. Mesmo este post é publicado com um atraso de dois dias porque aqui a net é quando é possível não quando nós queremos, mas aprendemos a viver com isso, porque em muitas outras coisas na vida também é assim.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

AMÍLCAR CABRAL

O Pai da Nação
Muito melhor do que poderia dizer aqui, dito ali:

Hoje é Feriado na Guiné-Bissau, pelo pior motivo de todos. Há 36 anos, Amílcar Cabral, a maior esperança de sempre do povo guineense, era assassinado.

sábado, 5 de abril de 2008

A D. BERTA

Agora na casa da avó, num local onde se acorda com o crepitar do lume e o cheiro a café de cevada, e quando se olha pela janela de manhã o manto verde está coberto de branco, longe da Guiné por estes dias, lembro aquela avó que muitos adoptam em Bissau.
É um desafio falar numa mulher tão querida, tão admirada. Há muito que vos queria falar da D. Berta e tenho adiado à espera das palavras que consigam descrever o que se sente naquele lugar especial. À espera disso temo que as palavras nunca cheguem.
A D. Berta é uma mulher especial com um lugar único em Bissau, com um toque de encantado. O Cantinho da Avó Berta é também chamado de Pensão Central. Neste edifício, na Av. Amílcar Cabral, com uma grande varanda que rodeia todo o 1º andar, há um alojamento modesto e um restaurante com a estranha capacidade de nos transportar no tempo. Sabe quem já lá esteve do que estou a falar. Da calmaria após o almoço, a brisa a levantar um pouco todos os tecidos coloridos, panos de parede e toalhas, e se num desses momentos se tiver a sorte de ouvir uma “morna”, passar os olhos por cada um daqueles quadros, retratos, fotos, dedicatórias, paredes inundadas de recordações de décadas e décadas passadas.
A D. Berta nasceu em Cabo-Verde mas é Bissau que mais espaço ocupa no seu coração, na cidade que escolheu para viver há mais de 60 anos; foi nesta cidade que, durante o último conflito militar (1998) demonstrou as suas extraordinárias capacidades humanitárias, a sua solidariedade imensa. Pelas suas qualidades excepcionais foi já condecorada pelos 3 países a que mais está ligada: a própria Guiné (pelo Ministério do Turismo), Portugal, e há alguns dias por Cabo Verde.
Para além do quanto é boa, carinhosa, do quanto sabe ajudar, serve ainda alguns dos melhores pratos em Bissau. É ali que se come o melhor “Pitch Patch” - canja de ostras - e a melhor salada de camarão.
É um lugar familiar, e muitas das pessoas que por ali passaram adoptaram esta carinhosa avó, que por sua vez continua a ver crescer o seu rol de netos.
Hoje é daqueles dias que mais sinto o quanto é bom ter uma avó, aquela casa que não sendo “a nossa”, é aquela onde ainda sentimos que pertence uma grande parte de nós.
É por isso que compreendo este sentimento que liga muitos dos que aqui passam a avó Berta. É bom poder haver um lugar assim aqui tão perto, onde estamos tão longe.
(O texto foi escrito há alguns dias, quando estava efectivamente na casa da minha avó, infelizmente o tempo e a net só agora permitiram que o divulgasse aqui, agora novamente em Bissau.)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

OS OLHOS AZUIS DA MEIDA, E A FATINHA

É raro mas, sim, os olhos da Meida são mesmo azuis. Também fiquei impressionada a primeira vez que vi esta menina tão negra, com os olhos tão azuis.
Comecei por conhecer a Fatinha no primeiro ano na Guiné, e um dia puxada pela mão dos seus 2 aninhos fui encontrar os outros meninos que ali viviam; afinal ao lado da estrada principal (e aqui tão perto), disfarçadas por uma ou outra casa melhores à frente, por esteiras, carros velhos e contentores, existem muitas “casas”.
A Fatinha era órfã de uma mãe que morreu, e de um pai que para ela nunca tinha vivido. O sonho da sua velha, fraca e pobre avó era que alguém desse um melhor futuro à menina. A Fatinha era a menina que se destacava entre todos os outros meninos daquela tabanca, a pele um pouco mais clara, umas expressões mais fininhas, a única com um vestido limpo, que contrastava com os meninos e meninas nus, ou só com umas cuecas ou só com uma t-shirt, roupa velha, rota, suja, com terra pelo corpo todo.
O destino da Fatinha sempre me pareceu diferente e mais sorridente do que o de todas as outras crianças. Assim foi, passado pouco tempo a Fatinha foi adoptada por um simpático casal italiano. Há duas semanas a avó e o Papa (tio) da Fatinha mostraram-me as fotografias vindas de longe, que muito me emocionaram. Hoje a Fatinha está crescida, com cerca de 5 anos, vive numa casa bonita, apaga as velas de um bolo de aniversário numa bela sala, e brinca na neve num lindo e quente fatinho próprio para a neve. Foi assim a sorte da Fatinha.
A Meida é uma ternura de menina. Também ela está crescida, passaram quase 3 anos desde aquela foto. Mas a Meida continua a viver na tabanca aqui tão perto. Sempre que a vou ver anda quase despida, descalça, cheia da terra onde passa o dia a brincar. É uma menina feliz, que não diz uma palavra de português, que reconhece a amiga nas fotos mas não compreende nada de todas aquelas coisas diferentes que rodeiam a amiguinha. Sempre que vejo a Meida, e os outros meninos lembro com saudades a Fatinha. Imagino se algum dia se irão reencontrar? Como será? Será que a Fatinha se lembra que tinha uma amiga Meida, negra de olhos azuis?

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

TITINA SILÁ

Fez ontem anos que morreu Titina Silá. Foi assassinada quando ia a caminho do funeral de Amílcar Cabral (um post para o futuro). Era militante do PAIGC e uma das muitas mulheres que combateu na Luta pela Independência. Muitas foram as mulheres guineenses que ao lado dos homens combateram pelos ideais em que acreditavam. Há um monumento na Amura, forte militar em Bissau, em homenagem à Titina Silá. Também é lá que se encontra o túmulo de Amílcar Cabral. Mas ainda não foi desta que consegui passar do portão da Amura, na foto em baixo conseguida um tanto ou quanto furtivamente aos militares de guarda.
Sem considerações sobre a guerra, que não me interessa, não foi nem nunca é solução, queria apenas prestar homenagem a essa mulher, a todas as outras ex-combatentes, e ainda a todas as mulheres que não lutando da mesma forma, lutaram em sentimentos pela perda de maridos e filhos. Não sendo feminista extremista emociona-me e faz-me sorrir a força e carácter de certas fêmeas, como por aqui se diz vulgarmente. (A foto em cima à esquerda, com Titina Silá, Amilcar Cabral e população, faz parte do arquivo fotográfico da Fundação Mário Soares)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

ROSTOS BISSAU III

Saliu é um funcionário da FDB. Às vezes mais apetece dizer “o” funcionário da FDB. Em Abril de 2007, umas das minhas actividades extra-docência passou a ser o apoio aos serviços administrativos da faculdade, vulgo a Secretaria. É aí que está o Saliu, e ele desdobra-se em trabalhos pela instituição, desde a distribuir os livros de sumários, a fazer todos os recados dentro e fora da faculdade, entregar convites para cerimónias, recolher programas e outros documentos para arquivo, afixar avisos e, no meio disto tudo, cumprimentar todas as pessoas que por ele passam. O Saliu é sem dúvida o melhor exemplo de funcionário que por aqui já encontrei. Já tem alguma idade e as coisas evoluíram muito na faculdade, mas faz um esforço enorme e tem uma vontade gigante de fazer e fazer bem. É humilde, e fica zangado consigo próprio se por acaso se esquece de alguma coisa ou há alguma que faz menos bem. Diz muito apressadamente “O Saliu pede desculpa” e faz um gesto e acena a cabeça, como quem diz “Não sei onde estava com a cabeça”. É genuíno naquilo que faz, naquilo que diz, tem orgulho no seu trabalho, o que se não é assim tão fácil de encontrar. Como a generalidade dos guineenses queixa-se das dificuldades económicas mas quem o pode censurar?! Tem salários em atraso e (só) ganha cerca de 26.000 FCFA por mês, sim estamos falar de cerca de 40€. É mais do que orgulho no seu trabalho, é por amor à faculdade e às pessoas que dela fazem parte que o Saliu lá está todos os dias, que diz bom dia a toda a gente, que sempre diz: “O Saliu vai fazer, vai tratar”, o que for preciso.
É muçulmano e não celebra o Natal mas há uns “Pais Natais”amigos que o visitam todos os anos. E este ano já abriu uma das prendas que o está a deixar muito feliz e que exibe com orgulho: uns sapatos novos. É que no que toca à vaidade, não há ricos nem pobres na Guiné, todos gostam de se arranjar bem, principalmente para as festas. Na última cerimónia da FDB, quando a foto foi tirada, até disseram ao Saliu que ele mais parecia um “Presidente”. Não há quem resista a elogios, e como o melhor caminho para os receber é merecê-los, há que fazer por isso. Aqui, nas festas todos os merecem, todos dão o melhor de si. No trabalho, o Saliu merece todos os que se lembrarem.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

ROSTOS BISSAU II

“Braima, tem um problema no carro de Ana!” Normalmente é assim que começa o difícil diálogo com Braima, o mecânico. Até agora o jipe, apesar dos seus 20 aninhos, não tem dado grandes problemas, mas quase não passa um mês sem precisar dos cuidados do Braima (as estradas aqui não ajudam). Foi assim que o Braima, nos últimos dois anos e pouco, se tornou um amigo e um profissional essencial na vida da Ana. A “oficina” é mesmo aqui ao lado do muro do Bairro e aí se pode dizer que se fazem milagres pois a oficina não tem paredes nem chão, só umas esteiras aqui e ali, e quase não há peças ou ferramentas. Mas tudo se arranja na hora, e conforme o problema de cada viatura.
Do Braima, mecânico, muçulmano, profundamente religioso, e com o sonho de ir para a Europa, o que quero recordar para sempre e partilhar com vocês é a forma de diálogo entre nós que, não sei como surgiu desta forma mas falamos como se estivéssemos a falar na 3ª pessoa, o que é simultaneamente estranho e engraçado.
A Ana pergunta: “O Braima pode arranjar o carro da Ana hoje?” e o Braima responde: “Se Ana não vai precisar de carro.” ou “Que horas que Ana vai precisar de carro?”.
E também: ”Braima, quanto é que isso pode custar?” ou no fim do arranjo ou da revisão: “Braima, é quanto?. Ao que o Braima responde sempre em primeiro lugar, e esta é genial: “Depende de quanto a Ana pode pagar.”
É assim em quase toda a África, não há um preço só para quase nada, quase todos os preços são para serem discutidos. Sim, nas oficinas também, e pasmem-se: mesmo nas farmácias. Mais uma vez, ontem, o jipe precisou da intervenção do Braima: um furo no pneu. Aproveitei para lhe pedir para lhe tirar uma foto (esta) e expliquei-lhe que queria escrever sobre ele aos meus amigos e se sabia o que era a Internet. Sabia que era pouco provável mas como há muitos cybercafés em Bissau podia já ter ouvido falar. Expliquei-lhe mais ou menos o que era, e ele concordou com a ideia (não sei bem se com um conhecimento esclarecido), e fiquei de o chamar quando tivesse tudo pronto. Acho que sei o que vai dizer; o mesmo que disse quando lhe tirei a foto: se podia tirar outra noutro dia em que já não tivesse o penso na testa (fez um pequena cirurgia há poucos dias). Claro que sim.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

ROSTOS BISSAU I

Rostos Bissau era a segunda escolha para o nome deste blog. A expressão nasceu nas conversas entre amigas quando, aqui em Bissau, tinha lugar alguma festa ou evento, e brincávamos que devíamos criar uma revista tipo “Caras”. Só que ao contrário desse tipo de revistas, a minha ideia de criar um blog com esse tema era dar a conhecer os rostos que fui conhecendo em Bissau, as histórias por trás dos rostos. Não estou a falar de VIP´s mas daqueles que para mim têm sido e são Muito Importantes na experiência que tem sido viver nesta terra.
Hoje apresento-vos a Nené. A Nené é a minha melhor amiga guineense, às vezes mais do que amiga, é uma mãe africana que aqui tenho. Para além de tratar de tudo aqui por casa, é uma grande companhia. Almoçamos juntas todos os dias da semana e conversamos sobre muitas coisas, sobre o dia-a-dia, trocamos confidências. Muitas histórias terei para contar da Nené mas esta aconteceu há cerca de duas semanas, foi marcante e traduz um pouco do que é a vida em Bissau.
Estávamos a almoçar e na TV estava a dar o Repórter África. Uma das notícias era sobre a falta de água em Bissau e como estava a afectar a população. Mostrava pessoas em filas de espera enormes para encherem um “bidon”, em locais onde havia algum poço, furo ou semelhante, pessoas que se tinham levantado de madrugada para conseguirem alguns litros de água, e que se queixavam daqueles que se aproveitavam de estar a guardar aqueles locais para cobrarem a água (sem qualquer direito legal para o fazerem). Perguntei à Nené, retoricamente, se também não tinha água em casa. E como é que o problema da falta de água a estava a afectar. Se não lhe pergunto ela não conta as dificuldades, não se queixa. Disse-me então que nesses dias não tem havido água perto de casa e que tinha que andar muito para procurar água, e nessa “manhã” tinha-se levantado às 4:30 para ir procurar água mas não tinha conseguido. Despachámo-nos o mais que pudemos para ela poder ir para casa descansar.
É difícil para quem, como todos nós, abre a torneira várias vezes ao dia, e lá está. Não pensamos sobre isso. Não ter água corrente em casa implica ir buscar água que servirá para tudo: cozinha, casa-de-banho, se pensarmos nas quantidades que é preciso para tomar banho, a quantidade de vezes que lavamos as mãos, que vamos à casa-de-banho, que lavamos comida, louça… é muito difícil imaginar. Quanta água será precisa por dia? Falta dizer que as necessidades de água aumentam proporcionalmente ao aumento do número de pessoas em casa. E aqui… a Nené, o marido, 4 filhos e uma criança pequena órfã de uma mãe que era vizinha da Nené e da qual esta toma conta.
Que chato, que difícil é a vida quando o sinal da TV vai abaixo, a luz ou a água faltam, por 5 minutos que seja.
Não sou moralista nem idealista, nunca fui. Se preferia que as coisas fosse diferentes? Acima de tudo sinto-me grata por conhecer a vida como ela é. Ter a oportunidade de conhecer outras realidades. De inicialmente ter pensado “como é que é possível?” mas ser de facto possível. Com pessoas que sorriem todos os dias.